Os pés descalços
I
"Avé Maria, cheia de graça, o Senhor é contigo, bendita..."
A ladainha tão conhecida de Rita vinha da cozinha, onde a ama de joelhos, bradava aos céus um sms com a chave do Euromilhões.
"Estranho", disse ela para si mesma, "ainda não vi Deus, nem Maria, nem Jesus, nem o Diabo, nem sequer o meu avô...". E flutou, rumo à cozinha, zonza, discreta, espantada com a leveza dos seus passos que pareciam nem tocar no chão.
E lá estava a ama, a rezar com toda a fé que uma vida pobre lhe dava.
"A menina não devia andar por aqui descalça.".
Rita parou.
Olhou para ela, inclinou a cabeça, esboçou uma expressão de estranheza, como se lhe perguntasse como é que ela a ouviu.
"E eu não a conheço desde que nasceu? É quase mais minha filha do que dos seus pais, perdoe lá a expressão.".
Outro esboço. Um sorriso, agorra.
"Lembras-te, Mila, de eu te dizer como eras importante para mim?".
"Ó menina, então anda outra vez com essas conversas?, vá, andor daqui que já me dá arrepios só de a ouvir falar desses modos! Toca mas é de ir calçar as chinelas, e ponha umas meias também, que a noite hoje anda à solta!", e virou-se enquanto punha ao lume um bule cheio de água.
"A noite anda à solta", pensou Rita.
II
AArrrggggghhhh!!!....
Um grito estridente ouviu-se de um dos quartos.
Quando a ambulância chegou pouco depois já não havia nada a fazer senão recolher o corpo, gelado, frio.
Os lábios azulados, a cara cinzenta, o corpo despido e peganhento do sangue seco que escorreu pelos pulsos. Os olhos fechados, como que a dormir a mais serena das noites. E um leve sorriso esboçado. Enigmático. Como se naquele momento a morte fosse o seu amante eterno que por fim a aconchegou nos seus braços seguros. Os pés marmoreamente descalços. Brancos e belos.
Dizem que a criada comprou a casa pouco tempo depois.
Dizem que ainda hoje são grandes amigas.
Mas... vá-se lá acreditar no que os outros dizem?
______________________
NPAF
"Avé Maria, cheia de graça, o Senhor é contigo, bendita..."
A ladainha tão conhecida de Rita vinha da cozinha, onde a ama de joelhos, bradava aos céus um sms com a chave do Euromilhões.
"Estranho", disse ela para si mesma, "ainda não vi Deus, nem Maria, nem Jesus, nem o Diabo, nem sequer o meu avô...". E flutou, rumo à cozinha, zonza, discreta, espantada com a leveza dos seus passos que pareciam nem tocar no chão.
E lá estava a ama, a rezar com toda a fé que uma vida pobre lhe dava.
"A menina não devia andar por aqui descalça.".
Rita parou.
Olhou para ela, inclinou a cabeça, esboçou uma expressão de estranheza, como se lhe perguntasse como é que ela a ouviu.
"E eu não a conheço desde que nasceu? É quase mais minha filha do que dos seus pais, perdoe lá a expressão.".
Outro esboço. Um sorriso, agorra.
"Lembras-te, Mila, de eu te dizer como eras importante para mim?".
"Ó menina, então anda outra vez com essas conversas?, vá, andor daqui que já me dá arrepios só de a ouvir falar desses modos! Toca mas é de ir calçar as chinelas, e ponha umas meias também, que a noite hoje anda à solta!", e virou-se enquanto punha ao lume um bule cheio de água.
"A noite anda à solta", pensou Rita.
II
AArrrggggghhhh!!!....
Um grito estridente ouviu-se de um dos quartos.
Quando a ambulância chegou pouco depois já não havia nada a fazer senão recolher o corpo, gelado, frio.
Os lábios azulados, a cara cinzenta, o corpo despido e peganhento do sangue seco que escorreu pelos pulsos. Os olhos fechados, como que a dormir a mais serena das noites. E um leve sorriso esboçado. Enigmático. Como se naquele momento a morte fosse o seu amante eterno que por fim a aconchegou nos seus braços seguros. Os pés marmoreamente descalços. Brancos e belos.
Dizem que a criada comprou a casa pouco tempo depois.
Dizem que ainda hoje são grandes amigas.
Mas... vá-se lá acreditar no que os outros dizem?
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NPAF
1 Comments:
as mulheres nunca são grandes amigas...
bem, até são, mas acabam sempre por se zangar...
são umas cabras, vá...
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