sexta-feira, fevereiro 17, 2006

A Vida Foi-se (Em Duas Metades)

Metade Direita

Tenho a vida toda para trás
E o que mais me apraz a esta distância
São os pequenos focos de luz que me espreitam da janela
Enquanto que a neve descongela ao seu ritmo parnacento
Junta-se agora a chuva ao vento, o azul já brilha de manhã
E ao relento treme o tempo que novo dia apregoa
- Que isto assim não se resolve, grita a mãe para a filha à toa
Na esperança de aceitação dogmática ou de um simples gesto com a mão.

Agora chove, o rio apressa a sua corrente
A voz ecoa – tens a vida toda pela frente, não te percas no caminho
E vai fugindo com um aceno – até logo e um beijinho
Parte indiferente à angústia de uma mãe desconsolada
Que no ventre sentia ainda o duro coice do feto
De quem seria um dia aquela menina desnaturada
A quem a vida daria um tecto, uma família e uma mesada
Que o tempo passa e não se afoga.

E lá ao longe, de repente
O rio acalma a sua torrente, sai o barco – vai-se embora.
Marcada estava a hora, lá ia a menina dos seus olhos
Do seu ventre e da sua mama
A quem tão cedo não faria a cama
No doce protesto da sua revolta minguada de mãe
- Que enquanto te queixas de sair com trela
Eu fico em casa a trabalhar que nem uma cadela.

E na ausência trémula de queixo caído
A máscara assenta à chegada do marido, a quem a indiferença parece ter talhado
- Não me chateies que venho cansado.
A mágoa aflora pela hora do jantar, mesa posta só para dois
Com a consciência de tudo o que acontecerá depois
Desde o dia da partida ao regresso, suspirando a cada notícia…

Metade Esquerda

Acordas hoje já bem tarde, que o dia é igual ao de ontem
E por muita novidade que te contem, nada se detém em invulgar suspiro
A viagem é curta e repetitiva quando se voa de asa partida.
Respiram-me agora no pescoço o café da manhã,
que pouco a pouco se tornou obrigação.
Vejo as cores e as pinturas nas paredes, mas tudo se mantém intacto
Perderam o sentido na sua insistência renitente de quem tem pouco que dizer e muito que demonstrar.
Gritam-te ao ouvido que o açúcar é prejudicial
No momento em que a vulgaridade de atinge de forma sobrenatural
E ali ficas, estatelada no chão, com o corpo dormente,
fisicamente ainda sentada ao balcão.

Vê-se o barco lá ao fundo com a faixa do regresso
O lenço já não é branco, nem de veludo nem de cetim
Apara a lágrima de uma alegria melancólica
Como que dizendo que quem chora de felicidade abraça a dor por engano
E naquele húmido pedaço de pano, a saudade de uma existência furtiva
De uma vida trabalhada e inactiva de dar sem nada pedir ou receber
Como quem pauta o riso pela dose de sofrimento enfrentada
Segue o carreiro para não ter de pisar a estrada
Que o alcatrão se faz pântano para alguns.

É curto o abraço, que a saudade não se expressa em quantidade
- Que tal correu esse tempo de liberdade onde pudeste caminhar sem trela?
- Foi fantástico na sua ilusão de quem pode finalmente pisar o chão, sem ter de o olhar pela janela.
E são facas que se alojam no seu peito a cada palavra sussurrada
Que trazem a memória de uma vida enclausurada ao seu interminável sacrifício
Corpo de miséria e suplício que agora se entrega à apatia reconfortante do amor
- Trouxe-te uma flor e uma garrafa de vinho para o pai.
- Muito obrigado, não era preciso. Uma lágrima escondida no seu peito aberto cai.

- O tempo não se esvai, é aproveitado consoante tem de ser.
Que me interessa pensar, se o destino de todos é morrer?, já dizia o meu avô.
As vidas passam, e com elas as crises, os desatinos, os amores e a vertigem
De correr depressa demais, sem ligar ao pó e à fuligem.


DACC

7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caro DDAC:
A primeira parte, "A Metade Direita", apanhou-me totalmente de surpresa.
É difícil descrever a sensação: a modos que como um tapete tirado debaixo dos pés - ficas sem reacção.
E de tal modo fiquei surpreso, tão grande foi o baque, que nem consegui pensar bem na "Metade Esquerda".
Como uma refeição que enfarta, boa, gostosa, tenho que digerir a "Metade Direira" antes de me debruçar sobre a outra.
Bolas, assim estás a pôr a fasquia muito alta! :P
_______________
NPAF

3:18 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Nem sempre duas metades se complementam para fazer um todo...

9:42 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

de facto assim é. e concerteza que uma só metade será por vezes mais completa que qualquer todo. mas no que à solidão do envelhecimento diz respeito (e parece-me que é ao que o texto se refere), todas as metades são poucas para completar um vazio interminável.

kkk.arla

10:16 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Este poema está lindíssimo. Parabens ao seu autor.

5:22 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

"Acordas hoje já bem tarde, que o dia é igual ao de ontem
E por muita novidade que te contem, nada se detém em invulgar suspiro"

que bem que descreve o meu dia a dia :(

12:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

a metade direita é claramente superior...

5:01 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

quem chora de felicidade abraça a dor por engano

esta vai directamente para o meu livro de citações.

8:33 da tarde  

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