quarta-feira, maio 17, 2006

Flash's



Deixámos o cabo assim que pudemos. O cheiro putrido a morte, o fedor dos cadáveres em decomposiçlão, tudo motivou a nossa retirada rápida.
Como no dia em que estava na quinta, e os porcos tiveram que ser mortos. Como o chapadão que levei porque "também queria matar os porcos".
Saímos agora, vamos encarreirados na parte de trás do jipe, o silêncio é quebrado pelo som dos solavancos, dos fantasmas que todos tínhamos mas nenhum queria admitir. À minha frente vejo o Pedro apoiar o queixo na G3. Está a... pôr o dedo no gatilho??!!

RATATATATATAA!!!....

Travagem brusca, corpos em cima uns dos outros, os jipes à frente param, todos saem, atiram-se ao chão. Emboscada!, Emboscada!, gritam uns, outros disparam para o mato espesso, às cegas.
No nosso carro estamos todos calados.
Agora o silêncio e o cheiro a pólvora.
O Abrantes tem o queixo a tremer com pedaços de crânio sapicados por toda a face. Eu só fechei os olhos. Sabe-me a boca a sangue.
Ao fundo o Gaiato apercebe-se e está-se a passar.
“Quero ir-me embora!! Quero ir-me embora, caralho!! Quero ir!!!”. O nosso alferes segura-o. “Larguem-me caralho!! Larguem-me já ou eu fodo-vos a todos!! LARGUEM-ME CARALHO!!!”.
E zás!
Dois chapadões bem assentes de um homem que toda a vida trabalhou o campo deixam-no num estado de choque bem mais silencioso. Chora para dentro agora. Sem lágrimas. Como já todos nós chorámos.

De volta à terra o silêncio sempre existiu.
Primeiro receberam-me como um herói, festa, casa cheia, pais a chorar de felicidade, a miúda a quem prometera casamento e que hoje é minha mulher e mãe dos meus filhos.
Às vezes tenho vontade de puxar o gatilho, como o Pedro. Quando vou à caça, e estou sozinho, quero puxar o gatilho. Quando acordo sobressaltado e a suar e urinado, quero puxar o gatilho. Quando me dão os remorsos e os fantasmas me visitam, quero puxar o gatilho.
Mas inevitavelmente me refugio no silêncio. Na caça. Em mim.
E tento esquecer que não entendo os meus filhos, que têm tudo e mais alguma coisa, e que valeu a pena, e que não tive culpa, e que sou ainda um bastião de alguém que era antes de ir.

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NPAF