quinta-feira, março 02, 2006

Acerca de um filme que vi...


Hoje falamos de filmes.
Primeira advertência: nunca fiz aquilo a que vulgarmente se chama"crítica de cinema", nem sei bem se o que estou prestes a fazer se poderá sequer enquadrar nessa categoria.
O que interessa é que tenho algo a dizer sobre um filme que vi hoje.
Não me julguem mal, e lembrem-se, é apenas uma interpretação. Há outras, concerteza.
Segunda advertência: os pensamentos estão um pouco na ressaca do filme, portanto, o mais natural é que possa parecer que amontoe tudo e não diga coisa com coisa.
Tentem ignorar esse aspecto.
Terceira advertência: se não viram o filme, talvez seja melhor não ler. Ou porque eu, da minha experiência, gosto de ser surpreendido com um filme, não levando preconceitos para a sala de cinema; ou porque talvez possa revelar mais do que queira e/ou seja desejável.
Vocês foram avisados!

Agora, vamos ao que interessa.

Hoje vi o "Match Point", do Woody Allen.
Antes de mais, o filme começa pelo fim.
Ignoremos de antemão a questão da crítica social e afins. Podia-se ir por aí, mas eu quero ir por outro lado.
"É melhor ter sorte do que ser bom".
E este é um bom tópico. Introduz-nos, se bem que ainda às apalpadelas, no dilema principal da trama: uma ética pragmatista versus uma ética dita "tradicional", ou "judaico-cristão", dos valores absolutos que se opõem.
Assim, temos uma frase que nos diz que é melhor, em termos práticos, ter sorte, fazer-te valer do teu "adequatio res ad intelectum" (definição medieval de "verdade", como a "adequação das coisas ao intelecto), ou seja, seres prático e estares-te nas tintas para os valores, porque esses não dão de comer a ninguém, do que ficares agarrado ao teu calor inexpugnável, mas que só te dá problemas.
Muito basicamente, é isto.
E esta trama, esta afirmação axiomática vai perseguir, como um fantasma, todo o desenrolar da história.

O filme é, a meu ver, baseado nos princípios da tragédia grega: temos um momento de apresentação do tema, um outro em que este se desenrola, um momento catárquico, aquando da morte da sua amante, e um outro, a conclusão final (desculpem não me lembrar dos temas, mas compreendam que estou de "ressaca" do filme!).
Acontece que o que o realizador faz é subverter totalmente este momento final.
Primeiro porque ao passo que na tragédia grega os dilemas que se apresentavam eram de uma ética a nível de espécie, de humanidade, transversais ao homem, e aos quais culturalmente era impossível escapar, aqui temos uma ética totalmente individualista. O problema que se lhe põe, e ao qual ele responde, aquando da aparição da figura do "coro", personalizados nos fantasmas das pessoas que ele mata, a esse problema ele responde com um grito de desespero. Ele gostava de ser apanhado só para que isso lhe provasse que havia uma réstia de sentido no mundo.
Temos então na personagem principal num paradigma do homem contemporâneo na sua sociedade multicultural: desenraízado, à deriva, numa busca desesperada por um sentido, totalmente a-religioso, totalmente des-sacralizado.
O segundo ponto para ser uma subversão da tragédia clássica: é que neste filme, reitero a ideia, o Bem e o Mal não existem. Existe, isso sim, um bom e um mau, isto é, aquilo que é bom para ti e aquilo que será mau para ti. É em função disso que ele faz a sua escolha, mas da forma mais pragmática possível, assegurando, qual derivação de uma animalidade, que "comes nesse dia". É em função disso que ele se sente ainda mais perdido. E é em função disso que o seu momento de redenção, quando ele dá a tal resposta, que ele se revela na sua mais profunda humanidade. A do reconhecimento da sua perdição, não obstante no momento a seguir já estar tudo bem, e se "aprender a calar a voz da consciência".

Em termos estéticos o filme está bestial.
Não se pretende que o espectador saia a pensar "então se fosses tu o que é que fazias", ouvindo-se respostas como "era fácil, dava-lhe a pílula do dia seguinte no cházinho e tudo ficava resolvido" - o que só revela, por ironia, a pertinência do filme bem como a sua actualidade - mas que se vá à estrutura por detrás disso, numa constatação muda que ultrapassa qualque valoração.
Não se fala de moral, de juízos de valor, mas de éticas opostas.
Nota muito boa para o momento de "tempo puro", aqui a lembrar Holderlin, do filme, quando o realizador cria todo um ambiente em que se atinge o pico da emotividade, quando a música (muito bem escolhida, obrigado Woody) sobe e se coaduna na perfeição de vermos, estáticos, o personagem na execução final do seu plano, matando a amante a sangue frio na encenação de um roubo.
Ali o tempo parou. Ali não havia nada senão dádiva de ser.
Mas, ao contrário de Holderlin (em estudo através de Heidegger e Deleuze), esse momento não provocou uma reviravolta sem retorno.
Aliás, a ter provocado, teria sido tão somente pessoal, e facilmente subornada pelo facto de aquele gesto lhe permitir continuar assegurada a sua próxima refeição.
E prova disso é o momento do "coro", os tais fantasmas.

O caricato é que na verdade, como que a provar que há um sentido, o detective encarregue de investigar o caso "sonha" com o deslindar do crime, exactamente, induzido talvez pelas presenças fantasmagóricas (os deuses do Olimpo, que de quando em quando metem o seu dedinho no caminho dos homens).
E o mais caricato é que a sorte leva a melhor.
Paradoxal.
Contudo, bastante real.

Espero que não vos tenha enfadado por demais.
E a tê-lo feito, que me contactem para que eu possa trabalhar para uma empresa de terapia de sono, e ganhar dinheiro com este dom de curar insónias.
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NPAF