quinta-feira, março 30, 2006

Sem intenção particular



A cadência das gotas de água contrastava com o calor que se fazia sentir.

Abafado. Intenso.

Nada a ver com a chuvada que caiu há cinco minutos atrás.

A chuva no Verão é, aliás, sempre uma coisa diferente. Parece que apetece remoer o dia e ficar na cama ainda a cheirar a sexo acabado de fazer.

Ambos fumamos, mas cada um está na sua pequena introspecção egoísta. É aqui que se separam os mundos fingidos. Depois do amor, se não há nenhum, não há maneira de o esconder. Apenas uma sensação mista de satisfação e vazio a rondar o estômago e a alma.

Mas, regra geral, o sono apaziguador e relaxado que sempre aparece passa uma esponja por cima de tudo, e é mais fácil esquecer.


***

Foi com surpresa que te vi passar.

Tu nunca me dizes nada a não ser que precises de mim. Por isso nem sequer te chamei. Pensei, deixa lá estar a rapariga, ela que vá à sua vida que eu vou à minha.

E foi com ainda maior surpresa que, já eu pensava que me tinha safado, te ouvi chamares o meu nome.

Um pouco trémulo (sabes que começo a tremer de sítios improváveis quando fico nervoso), virei-me, o meu rosto devia estar completamente desamparado...

Na cabeça, o Manuel Cruz já tinha falhado a entrada duas vezes. À terceira foi de vez....

E foi assim que naquele dia me me chegou às mãos um recibo carimbado e assinado por cima. Era oficial, mesmo que o soubesse: a minha segurança assentava sobre um postulado metafísico!




***

Um dos meus problemas maiores, daqueles fulcrais, que não se vêem mas interferem muito, sempre foi a ingenuidade.

Talvez quem pense que me conhece se ria. Talvez quem pense que me conhece terá a reacção de dizer, olha-me este gajo armado em cínico!, logo ele, que é um jogador!...

Mas não. Não sou um jogador. Quer dizer, não sou parvo nenhum, e sei perfeitamente como ser porco, só que simplesmente não o sou, acho que não vale a pena vender assim a alma ao Diabo.

Daí que diga que sou bastante ingénuo. Facilmente acredito na boa-vontade dos outros. Facilmente me compadeço e dou oportunidades sem fim. Enfim, sou um panhonha, é o que é! Mas não consigo deixar de ser assim. É intrínseco. Intrinsecamente panhonha!

Está bom de se ver que, com este feitiozinho, qualquer um que me queira passar a perna, pode fazê-lo sem dificuldades de maior...

Bem... uma introdução tão grande antecede algo de maior, é sempre de desconfiar tantas justificações sem que ninguém as peça... aqui não é diferente.

Eu sou ingénuo. Acredito no amor. E já tive algumas estórias com ela. Por acreditar magoei-me. Mas, que raio, acredito sempre.

Estúpido, não? Eu pelo menos, acho.

Por saber que sou assim é que, antes que o soubesse, já me tinha apaixonado de novo.



***

Foi numa noite que cheirava a terra molhada, quente, que os nossos corpos mataram saudades.

É incrível como há coisas que nos marcam como chicotadas.

O cheiro do teu corpo. Passados tantos anos nunca esqueci o cheiro do teu corpo.

Um cheiro bom, acolhedor, como se entrasse em casa.

Há casas que têm cheiros estranhos, que nós em entrando nos sentimos deslocados.

Mas o teu corpo não.

O teu corpo cheirava-me a casa.

Cheirava-me a conforto e paz. A segurança e placidez. A sopa a ferver no fogão. A laranjas no Inverno. A manhãs radiantes de Páscoa. À voz do meu avô a entrar aos domingos de manhã com um bolo para comermos ao pequeno-almoço. Ao rodar das tuas chaves na porta. À seca que acabava nos teus lábios.

“Já tinha saudades do teu corpo.”

“E eu do teu, tantas...”

“Não percas a tua fé. Há sempre uma mãozinha que nos põe no caminho um do outro, já viste?”

“Pois, a questão é que eu acho que já não acredito em mãozinhas...”

“E isso é culpa minha...”, e baixaste os olhos enquanto nos abraçámos num sufoco contido.



***

Depois de muito pensar, ainda estava magoado.

E quando apareceu a outra, nem hesitei: é uma tipa porreira, dá para manter uma conversa, faz umas massagens fantásticas, o sexo é bom, há uma química interessante... pronto, volta e meia finge um orgasmo ou outro, mas quem é que nunca o fez?...

Um dia confrontou-me: “o que é que tu queres desta relação?”

Definitivamente, não lhe soube responder logo, mas ela fez pressão. Disse que já tínhamos uma certa idade, não éramos nenhuns miúdos, eu tinha que saber o que queria, ela estava disposta a apostar em nós.

Eu confrontei-te do mesmo modo. Mas fui um pouco mais subtil. Perguntei-te o que é que tu pensavas disto, a outra tinha-me dito que me queria, e eu aqui, às tantas até sei o que devo fazer, mas quero que me digas se posso acreditar em ti ou não.

Como sempre foste evasiva. Nunca gostaste de aceitar responsabilidades. Os compromissos apavoram-te, eu sei, mas precisava de te perguntar.

Ficámos sem nos ver durante uns tempos.

Entretanto a outra pressionava, e pressionava.

Telefonei-te. Tínhamos que falar.

Encontrámo-nos no jardim. Tu tinhas um brilho diferente nos olhos. Como na primeira vez no parque de campismo, éramos tão novos, falámos em amor para sempre, em apostar numa coisa a sério, e no dia seguinte fui para a cama com uma ex-namorada.

Estávamos ambos na expectativa. Quem me dera não ter sido eu a telefonar, porque assim fui eu o primeiro a falar, a justificar o encontro, a necessidade, a urgência. Tivesses tu sido a primeira, e hoje seria concerteza diferente.

“Sabes, eu tenho estado a pensar, eu vou ficar com ela.”

Desvaneceu-se o brilho. Passaste à cordialidade e correcção.

“Sim, tu é que sabes, enfim...”

“Epá, eu com ela até me dou bem, e acho que podemos construir ali uma coisa fixe, sólida... algo com futuro, sabes?”

“Sim, sim...”, sorriste em amarelo, bochechas vermelhas – sempre foste tão boa em esconder as tuas emoções - “tu é que sabes, vais a ver é mesmo a melhor coisa que estás a fazer...”, e sorriste de novo, aquele sorriso que substitui o choro.

Houve um silêncio.

E foi aí que eu pensei, “sabes porque é que não fico contigo? É que com a outra eu sei com o que é que hei-de contar, no máximo dos máximos um par de cornos, mas isso não me molesta, porque, como te disse, já sei o que hei-de esperar. E de ti?, o que posso eu esperar de ti?...”



***

Já não ia a uma igreja há muito tempo. As minhas conversas com Deus costumam ter um tom monológico, mas volta e meia sinto uma certa necessidade de ir até à igreja, de procurar um consolo qualquer adveniente do facto de me prostrar ao altar, de joelhos, completamente vencido, nessa admissão da minha finitude, da minha impotência.

E, regra geral, sai-se sempre mais leve do que quando se entrou, como se um fardo enorme tivesse sido retirado das constas, dos ombros, dos ossos e músculos, do coração.

E foi quando saí, contrito, que comecei a ouvir na minha cabeça “quem diria que um dia... ora bolas esqueci-me do acorde, vamos lá outra vez. Quem diria que um dia... epá, esqueço-me sempre deste segundo acorde, não compreendo, mas vá lá, está a gravar, não está?, um, dois, três...”


_______________________

NPAF

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

É sempre bom recompilar um conjunto de pensamentos, dar-lhe a forma de um texto...pequeno, simples mas ao qual parece, ao terminar, não faltar palavras. Isto até à primeira leitura...difícil mesmo é conseguir guarda-lo na sua forma original, na forma como nasceu...enfim, afinal ele também vive e modifica-se com o tempo, só as rugas não o devoram mas o tornam eterno.
É sempre bom...ouvir as coisas, recordá-las e sentir-lhes o cheiro, “vivê-las”…ter a sensação de que viajar no tempo é possível!
É sempre bom ser-se egoísta, por um pouco de tempo, e sermos nós num lugar distante, satisfazer não só as nossas necessidades mas usufruir de luxo, burguesia e drogas…
É sempre bom…

1:51 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

se a vontade dos dedos foge ao acorde pré-definido, às vezes há que deixar a coisa fluir, sem grandes preocupações se o acorde está certo, se deverias estar a fazer algo novo com essa nova sequência de acordes... por vezes até é bom não tocar nada concreto, improvisar... No fim pensas, isto que fiz não é nada! pois não é, mas foi! isto na minha ideia...

2:36 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home