terça-feira, abril 04, 2006

As sombras caem e estive aqui todo o dia...



Este espelho diz-me que sou bonito, aquele ali diz-me que sou feio. Ao meio está uma janela que me diz que não quer saber, não está para me reflectir, deixar passar o vento já lhe dá mais que trabalho suficiente.
Do quarto ouço Dylan a dizer que nasceu aqui e morrerá aqui contra a sua vontade, qual talmudista recém-convertido. Lá fora abana a árvore furiosamente – sei que parece que estou em movimento mas estou parado, canta o homem no seu estilo inconfundível. Parece que há canções que têm os seus próprios momentos, e este é o seu momento na minha vida. Corro para o quarto e meto a faixa a repetir.

De espuma de barbear na cara, corto-me abaixo do queixo. Ainda tenho as cicatrizes que o sol não curou. Enquanto levanto o tampão do lavatório para que a água suja e a barba se vão, a minha noção de humanidade vai-se cano abaixo.
Limpo a cara e olho-me no espelho. Não está nem melhor nem pior que o normal – devo admitir que esta é uma das tarefas em que não sou nada bom. Já no quarto penso como perdi mais um dia sem fazer coisa alguma. As sombras caem e estive aqui todo o dia, está quente demais para dormir e o tempo foge, anuncia a canção.
Pela janela ouço uma travagem brusca, seguida de um embate violento e gritos de desespero. Os meus vizinhos correm a ver o que se passa, eu fico sentado na cama, apático, como se a vida tivesse feito uma pausa em mim. Estou hipnotizado pela música, não consigo ver porque me deveria preocupar

Um que morreu, outro que ficou em coma. Um rapazinho de seis anos, pelo que dizem. O condutor que provocou o acidente conduzia um carro de luxo, e assim que se apercebeu da gravidade da situação pôs-se a andar. A minha noção de humanidade foi-se cano abaixo, por trás de todas as coisas bonitas há sempre algum tipo de dor, anuncia o cantor com a sua voz de ovelha.

Acendo a televisão, a canção ainda a repetir, e acreditando em tudo o que é noticiado, uma rapariga adolescente suicidou-se pelas onze da manhã. Segui o rio e fui dar ao mar. A ponte 25 de Abril aparece numa belíssima imagem de helicóptero. Ao que parece, a rapariga mandou-se dela abaixo, os mergulhadores procuram ainda o corpo.

Na sua mesa de cabeceira encontraram uma nota de suicídio, que a mãe lê agora em voz alta para a televisão em directo. Poucas palavras se percebem, o choro é ainda mais convulso que antes, e este desespero está-me a agoniar. Ela escreveu-me uma carta e escreveu-a tão docemente, pôs em escrita o que tinha na mente, canta Dylan na passagem de lá maior para mi.
A mãe continua a ler a carta, e embora não se perceba nada do que ela diga, Dylan esclarece-nos meros versos adiante. Às vezes a minha carga é mais do que a que consigo carregar... Nasci aqui e morrerei aqui contra a minha vontade…

Desde que comecei a ouvir incessantemente esta canção, as desgraças sucedem-se. Não que elas não sucedessem antes, não que ela seja a razão de estas acontecerem. Esta canção não é um mau agoiro, como muitos religiosos estarão certamente a pensar agora, é antes uma catarse, um lenço estendido para nos limpar as lágrimas, um abraço forte no momento do adeus…
Não faz escuro ainda, mas está quase lá…
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DACC

Nota - verificar a letra uns textos abaixo neste mesmo blog ou em http://www.bobdylan.com/songs/notdark.html
Imagem: http://nossomocambique.blogs.sapo.pt/arquivo/PEMBA%20-%20noite%20de%20luar%20na%20praia%20do%20Wimbe.jpg

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Remember...?GET A LIFE!!!

3:11 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

:D

5:42 da tarde  

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