segunda-feira, abril 10, 2006

Cadernos de um bombista experimental, ou a triste sina de um homem nos reinos de Portugal

Episódio II
"FMI"


Temos que ter em conta que fomos educados para obedecer.
Desde pequenos, porta-te bem filho, vai à escola, não faças confusões, obedece filho, obedece.
Na política, a estabilidade! O país está sempre em crise (é um fantasma recorrente do imaginário colectivo português, tipo papão, Salazar ou Dom Sebastião), precisamos de estabilidade. E para haver estabilidade, compreendam, tem que se fazer sacrifícios (outra palavra chave na política portuguesa), para a estabilidade, isto é.
E, de tal forma a coisa foi feita, riscando transversalmente as gerações pós 25 Abril, desde a infância, em casa (afinal, dantes, quem é que mandava em casa? O chefe de família, claro está!...), passando pela escola e o seu ensino tendencionista (nunca me convenceu a estória das Cruzadas, muito menos a dos portugueses descobridores e donos de meio mundo - e claro que não falámos nas chacinas e atrocidades! - e da Guerra Colonial, só sabia aquilo que lia por mim, que andar-se cá a falar de guerras na escola não é coisa boa. Guerras, só Aljusbarrota, e foi porque ganhámos - eramos menos, mas coitados dos espanhóis ainda não tinham armas de fogo!...), terminando no dia-a-dia político e social, com um discurso da elite dominante sempre virado para a conservação do poder (que é o que mais importa, não o progresso do país) e os noticiários a abrirem com notícias de crises e crimes!
Chiça, é dose a mais para um homem só!
Em Portugal nada funciona. Ou melhor, nada funciona a não ser que seja para favorecer o Estado. Olhem só por exemplo o IRS: há um prazo de entrega, mas não há um prazo para que nos paguem. Quem quer que se meta em atalhos com o Estado já sabe que vai sempre sair a arder da coisa, a não ser, é claro, que tenha uma boa cunha lá dentro.
Em termos de Justiça, ultimamente a erupção de oftalmologistas em Portugal fez-se sentir com um abrupto decréscimo das diopetrias da senhora cega, e diz quem sabe que a digna senhora já nem usa venda e vê melhor que muito falcão que por aí anda em falcoarias reais!
E porque a coisa está a andar numa cadência de associações livres, pergunto-me eu: falcoarias reais???!! Então mas essa corja de monárquicos, essa pandilha de parasitas não foi exonerada há quase um século?? Então têm agora que poluir o espaço visual com emblemazinhos auis-e-brancos nos automóveis topo de gama?! Tenho que passar naquela rotunda movimentada todos os dias e ver os cartazes monárquicos dos candidatos monárquicos ou das touradas reais e monárquicas com forcadozinhos amaricados e monárquicos e toureiros endinheirados e reais?! O Nuno da Câmara Pereira não poderia porventura ser declarado "persona non-grata" pela péssima imagem que tem dado fado através da sua voz de cana rachada e pose de marialva - a imagem típica do português: a corrente de ouro, a unhaca, o bigode, e esta sim, todos o têm, o olhar embevecido para o alto, como que a ver se consegue descortinar a virgem santa por entre as nuvens ou a ler a faixa que o avião traz enquanto sobrevoa Albufeira em pleno pico do Verão.
"Kadoc Dancing-Putas", "Festa da T-Shirt Molhada", "Miss Beijo Fuzeta 2008", e pronto, o português é feliz, o dia está de sol, os putos hoje até se estão a dar bem, não fizeram birras, o leasing das férias foi amigalhadinho, mas é a vida, a seguir talvez um MacDonaldas, eles deliram, ficam todos felizes, e eu só queria saber quem é que disse àquele gajo que ele era jogador para o Benfica, mas pronto, a época está quase a começar, diz aqui no jornal de hoje, ó filha, passas-me aí o Sudoku no fim da página?, obrigado, já comi, só se houvesse de presunto, e um dia estão todos crescidos e nós, cá vamos andando, enfim, tira lá uma fotografia para a gente se lembrar um dia, e agora vou ali fazer uma sestinha, vocês vão e divirtam-se, vejam as lojas e cuidado com os ladrões, que hoje em dia não se pode confiar em ninguém.
A triste imagem de uma vidinha em potência arrepia-me a espinha ao ponto de me deixar paralizado rumo a ela.
Talvez que a desobediência seja um barbitúrico poderoso o suficiente para me arrancar desta catatonia hipnótica e muda.

NPAF