sábado, abril 29, 2006

... pt 6

digo-me que nada há a fazer
senão esperar pelo fátuo momento em que o sangue pare de correr
para que as extremidades do coração não se toquem
e o aperto se transforme numa simples contracção muscular...
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DACC

quarta-feira, abril 26, 2006

... pt 5

vencem as gargalhadas o terror da circunstância permanentemente inapropriada
o passo é incerto e a madrugada já se esgota
assim como o ténue fio da racionalidade que nos separa
sem derrotismos nem histerias despropositadas
apenas... isto...
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DACC

segunda-feira, abril 24, 2006

... pt 4

reparo não ter nada que dizer com a melhor das intenções...

não estás aí, eu não estou aqui...

enfim, existimos numa pesada ausência...

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DACC

domingo, abril 23, 2006

... pt 3

...é claro que tudo se movimenta ao seu ritmo normal, pensavas tu
teremos paciência para ser quem respiramos
ou deixaremos o tempo escolher ao seu passo desenfreado?

...é claro que o meu braço se estende na tua direcção, pensava eu
teremos paciência para respirar quem somos
ou deixaremos para trás o que é evidentemente necessário?


...é claro que tudo se movimenta em direcção contígua, pensavamos nós
os olhos dizem o que têm a dizer, a pele adormece-nos da realidade
chegamos mais perto da essência da vida sem parar para pensar qual é

teremos paciência para encostar a testa ao luar
ou fingiremos que a tristeza é um lugar-comum para os desencaminhados?
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DACC

sábado, abril 22, 2006

... pt 2

uma nova brisa se levanta nesta manhã queixosa
a chuva é ténue e breve, acaricia a pele e morre ao vento
saudosa da queda, ansiosa pelo chão...

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DACC

sexta-feira, abril 21, 2006

A era da informação

A era da informação consome-nos a cada dia que passa.

Lembro-me de ter quinze anos e suspirar durante dois anos para conseguir arranjar o álbum “Badmotorfinger” dos Soundgarden! Lembro-me de finalmente ter dinheiro para o cd, e no dia em que fui a Lisboa (coisa na altura muito rara), comprei-o, querendo ainda a ironia do destino que na altura não tivesse sequer aparelhagem que lesse o dito formato. Que fazer?

Felizmente tinha (e tenho) uma prima muito bacana que já tinha leitor de cd’s, e fez-me uma gravação para cassete! Que felicidade! Era a minha banda preferida, tinham-me feito esquecer os Nirvana num ápice, e acabei por partir a fita passados uns bons seis anos de rodagem desmesurada! Na altura até já tinha leitor de cd’s, mas uma vez em que o laser estava cansado, tive de ouvir a cassete, e a sua hora tinha chegado… Senti uma comoção enorme, porque adorava aquele álbum…

Hoje em dia, a oferta é tanta, que chego a um ponto em que já não dou quase valor algum a coisas que procurei durante anos e anos… Saca-se da net, grava-se para dvd em mp3, junto com mais uns sessenta álbuns, e para lá fica.

E isto tudo porquê? Estão para aparecer umas cenas do género pen drive com capacidade de 100 gigas ou lá o que é… A minha problemática é: será que me vou tornar mais um daqueles gajos que têm oitocentos mil cd’s em casa mas não conhecem o mind riot, a faixa número nove do “Badmotorfinger”? Vou-me tornar mais um daqueles que passou anos à procura do “Era Uma Vez Na América” do Sergio Leone para depois o armazenar num dvd com mais uns cinco filmes em divX, à espera de um dia em que apeteça vê-lo?

Senti-me contente hoje porque me arranjaram uma gravação do novo álbum de Tool, que ainda está para sair, e, tal como há uns anos atrás, parecia um puto de volta de um novo brinquedo… Abdiquei de tudo o que tinha a fazer, recusei-me a ir jogar um snooker, não fui às aulas, sei lá… Foi um daqueles momentos, não havia nada mais que pudesse fazer, estava apaixonado, e quando estou apaixonado não ligo a mais nada do que se passa no mundo. Não apaixonado pela música, mas sim pela felicidade que ela me trazia.

Não quero mais apregoar que “tenho” este álbum, aquele filme, a outra série, sem querer dizer com isso que tenho, já vi e tenho uma opinião formada, boa, má, assim-assim, seja lá o que for. Não me quero deixar sufocar pela informação, pelo “ter por ter”, quero que as coisas tenham significado, não quero que esta seja só mais uma noite, não quero o sentido da vida, quero mais destes pequenos momentos de prazer egoísta, que com prazer compartilho com alguém que se sinta da mesma forma que eu. É só.

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DACC

quinta-feira, abril 20, 2006

Falemos um pouco de política...


O líder do PSD, Marques Mendes, veio a público reprovar a situação ocorrida recentemente na Assembleia da República, em que não ocorreu votação por falta de quórum.
Quando questionado acerca se concordava com a situação, respondeu prontamente que não; de seguida, o jornalista perguntou qual a sua justificação para a falta dada, ao que o líder social-democrata contornou, qual Luís Figo, a pergunta, de forma, admito, brilhante - tal e qual o craque! -, dizendo que não queria comentar a situação, mas que não ía justificar a falta que deu, adiantando de seguida, que a situação foi lamentável, e que jamais se deveria repetir.
É curioso que Marques Mendes caia em contradicção deste modo: por um lado afirma que a situação é reprovável; por outro, esquiva-se a dizer porque faltou, dizendo que prefere que lhe debitem um dia de ordenado. E a responsabilidade, onde está? Com que direito vem ele reprovar a situação, se, tendo oportunidade, logo ao início, de contribuir para que ela não ocorresse, preferiu antecipar as suas férias pascais?
Dizer que o discurso da crise só se aplica ao povo, e que a elite dominante passa ao lado dos sacrifícios exigidos a quem menos pode já é um lugar comum, muito embora não seja menos verdade por isso.
Inédito mesmo seria despolitizar a classe política e retorná-la à sinceridade da vontade de melhorar um país que está, a bem dizer, na merda.
Bem a modos dos tempos do PREC, em que não havia códigos de vestuário na Assembleia da República, se fumava na televisão, se tiravam fotografias para o B.I. e cédula militar de óculos escuros. Porque a aparência era um supérfluo à vontade de sair da inércia de 48 anos de ditadura. Porque havia desejo de, acima de interesses partidários, contribuir para um novo Portugal.
Martin Heidegger, filósofo contemporâneo, disse a dada altura que "já só um Deus nos pode salvar", referindo-se à necessidade de um retorno crítico ao vector espiritual do homem como fuga do paradigma da técnica, que consome e dessacraliza o homem, esvaziando-o de sentido.
Adaptando a coisa, e tendo em conta que, de filósofo só tenho um canudo, diria que, para a política portuguesa, já só um novo 25 de Abril nos pode salvar. Mas não um 25 de Abril com episódios de comunistas soviéticos ou de forças de direita entre o antigo regime e a nobreza. Não, um 25 de Abril que desperte nas mentes a necessidade de sair do egoísmo retrógado e tão característico do "portuga", e que o leve a abdicar dos interesses próprios de luxo, glória e poder, em detrimento de uma nação.
Falo de um 25 de Abril para as mentes!
Em conversas já me falaram de um Governo tipo Junta de Salvação Nacional.
É uma hipótese.
É que, aquando do 25 de Abril, essa mesma Junta garantiu que, nem à esquerda nem à direita, ninguém se armasse em chico-esperto e se chegasse à frente a reclamar louros imerecidos de algo conseguido por todos.
Nessa altura, o MFA era garantia de isenção. Mesmo com episódios humorísticos de paraquedistas e contra-informação.
Hoje, perdoem-me a sinceridade, seria uma porta aberta a uma ditadura militar. Não acredito que generais saídos do fascismo e soldadinhos de chumbo com a quarta classe e um gosto impressionante por estar na moda com veículos kitados e atacadores brancos enlaçados à marinheiro nas botas cardadas possam ter a capacidade de fugir ao brilho tentador e fácil da ganância.
Quem será, então, o novo MFA?
Talvez o conjunto de cidadãos anónimos que pensa, e que crescentemente está farto de ver as mesmas caras nos mesmos sítios num país que inevitavelmente insiste em continuar na mesma.
E, neste espírito, junte-se a mim quem queira: 25 de Abril, sempre!
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NPAF

Novo cd "Pele" - está bem e recomenda-se!
















Reparem bem nesta pérola que saiu há pouco tempo.
No caso específico, a letra transcrita pertence à faixa 3 do cd "Pele", do José Peixoto em colaboração com a Maria João.
A letra é da autoria da Eugénia Vasconcellos, esta, mas a maioria é do Tiago Torres da Silva.
Não sabem quem são? Corram-nos no Google!...
Quanto ao cd, vale a pena. Mesmo.
Consegue conjugar 3 vertentes: a estrictamente musical, a estrictamente poética, e ambas num conjunto fantástico completamente diferente das anteriores.
Mas desde já o aviso: não é, de todo, um disco "fácil", não o dissesse já o backgropund dos seus intervenientes...
Um cd para ouvir "com olhos de ver"...


Que nome posso ter

Diz-me,
depois de ti que nome posso ter
o tempo passa e eu não sei esquecer
essa hora morna de prazer
essa hora doce de querer


O tempo passa e eu só sei esperar
do miradouro sonho-te a chegar
ao meu corpo casa de morar
flor vermelha quye abre devagar

Quem sou agora não posso saber
a minha alma não soube reter
faz-se silêncio ao anoitecer
as aves choram quem não deixam ver

rasga a distância, volta, meu amor
rasga a distância, volta, meu amor

Depois de ti que nome posso ter
o tempo passa e eu não sei esquecer
essa hora morna de prazer
essa hora doce de querer


Depois de ti que nome posso ter
Depois de ti que nome posso ter


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NPAF

quinta-feira, abril 13, 2006

Dois apontamentos sobre a alma humana - diversão sem intenção moral, mas com intencionalidade

I

Às quatro da manhã olhei para o relógio de esguelha. Ou era da pilha, ou da falta de luz, ou da bebedeira que tinha em cima, não sei bem, mas só após alguns segundos é que consegui ver bem as horas que eram.
Saí das Amas passado uma hora ou duas desse episódio (o tempo é tão fátuo quando estamos bêbados - ora tão lento que atroz, se a camada assenta mal, ora rápido e fugaz, se a coisa está a derivar para uma celebração da amizade).
A noite estava convidativa, por estes lados em meados de Maio já o tempo apetece, e, naturalmente, caminhei para casa.
Na cabeça, a música. Não aquele transe psicadélico, música de viagem, mas outra: Tony de Matos!
Pois é, não tenho vergonha de o assumir: gosto de Tony de Matos, mas só de algumas músicas. Acho vulgar quando ele se põe a esganar a voz, a exibir-se qual pavão, a puxar dos agudos naquela rouquidão limpa, o galã português que fuma o seu cigarro num canto escuro. O proscrito que todas as mães gostariam de ter como genro.
A propósito ainda do Tony de Matos, lembro-me uma vez, era chavalito, começaram a surgir em Portugal aquelas pulseiras manhosas que diziam que eram polarizadas. Um coisa de arame com duas bolas nas pontas... Quando apareceram essas pulseiras, a publicidade em flyers estava também a dar os seus primeiros passos. E nas caixas do correio da altura surgiram uns papéis que diziam que quem usasse aquilo podia vender saúde. E figuras públicas anexavam a sua imagem ao produto (ou vice-versa), a dizer "isto é uma coisa excepcional!", e afins.
Acontece, para resumir, que uma dessas figuras públicas era o Tony de Matos.
Lembro-me pictoricamente: "Desde que comecei a utilizar a pulseira XPTO, nunca mais tive dores nas articulações!". E um Tony de Matos sorridente e sem dores aparecia na fotografia anexa.
Passados dois dias de aquilo entrar na caixa do correio do meu avô, zás!, Tony de Matos morreu. Não pude deixar de achar irónico. Um pouco como as excursões a Fátima em que lerpam autocarros inteiros que caem de ravinas. É irónico. Deus tem mesmo um sentido de humor brutal.

II

No Largo Luís de Camões, ali ao pé da Electrilar, a primeira dúvida: esquerda ou direita?
Eu explico: para mim caminhar em Évora é uma coisa que me dá gosto. Há sempre um pormenor ou outro, um recanto que nunca se viu. E de noite, já dizia o Vergílio Ferreira (e se ele o disse, é porque é verdade, caso contrário não recorreria à sua autoridade evocando o seu nome), nesse romance que nunca consegui ler até ao fim, a "Aparição", de noite, Évora é um mimo! Principalmente porque de noite os eborenses estão em casa, logo, a cidade toda ela se torna mais digna.
Passo pelos arcos da Rua João de Deus. Só ouço os meus passos. Os meus passos e o Tony de Matos. Tenho traquejo de cidade grande, estou sempre à coca para não ter surpresas.
A Praça do Giraldo abre-se como uma paisagem magnífica. Cheira a flores, é quase Verão. Um casalinho come-se no mármore da fonte, finjo que não vejo (afinal de contas, quem nunca pecou?).

Flash!
E fico parado ali, no meio da praça.

Ligo o piloto-automático, vou pelo Rossio, o ar faz-me bem.
Entro em casa. Caio na cama. O Tony de Matos canta só para mim.
E, naturalmente, sonho contigo.

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NPAF

segunda-feira, abril 10, 2006

Cadernos de um bombista experimental, ou a triste sina de um homem nos reinos de Portugal

Episódio II
"FMI"


Temos que ter em conta que fomos educados para obedecer.
Desde pequenos, porta-te bem filho, vai à escola, não faças confusões, obedece filho, obedece.
Na política, a estabilidade! O país está sempre em crise (é um fantasma recorrente do imaginário colectivo português, tipo papão, Salazar ou Dom Sebastião), precisamos de estabilidade. E para haver estabilidade, compreendam, tem que se fazer sacrifícios (outra palavra chave na política portuguesa), para a estabilidade, isto é.
E, de tal forma a coisa foi feita, riscando transversalmente as gerações pós 25 Abril, desde a infância, em casa (afinal, dantes, quem é que mandava em casa? O chefe de família, claro está!...), passando pela escola e o seu ensino tendencionista (nunca me convenceu a estória das Cruzadas, muito menos a dos portugueses descobridores e donos de meio mundo - e claro que não falámos nas chacinas e atrocidades! - e da Guerra Colonial, só sabia aquilo que lia por mim, que andar-se cá a falar de guerras na escola não é coisa boa. Guerras, só Aljusbarrota, e foi porque ganhámos - eramos menos, mas coitados dos espanhóis ainda não tinham armas de fogo!...), terminando no dia-a-dia político e social, com um discurso da elite dominante sempre virado para a conservação do poder (que é o que mais importa, não o progresso do país) e os noticiários a abrirem com notícias de crises e crimes!
Chiça, é dose a mais para um homem só!
Em Portugal nada funciona. Ou melhor, nada funciona a não ser que seja para favorecer o Estado. Olhem só por exemplo o IRS: há um prazo de entrega, mas não há um prazo para que nos paguem. Quem quer que se meta em atalhos com o Estado já sabe que vai sempre sair a arder da coisa, a não ser, é claro, que tenha uma boa cunha lá dentro.
Em termos de Justiça, ultimamente a erupção de oftalmologistas em Portugal fez-se sentir com um abrupto decréscimo das diopetrias da senhora cega, e diz quem sabe que a digna senhora já nem usa venda e vê melhor que muito falcão que por aí anda em falcoarias reais!
E porque a coisa está a andar numa cadência de associações livres, pergunto-me eu: falcoarias reais???!! Então mas essa corja de monárquicos, essa pandilha de parasitas não foi exonerada há quase um século?? Então têm agora que poluir o espaço visual com emblemazinhos auis-e-brancos nos automóveis topo de gama?! Tenho que passar naquela rotunda movimentada todos os dias e ver os cartazes monárquicos dos candidatos monárquicos ou das touradas reais e monárquicas com forcadozinhos amaricados e monárquicos e toureiros endinheirados e reais?! O Nuno da Câmara Pereira não poderia porventura ser declarado "persona non-grata" pela péssima imagem que tem dado fado através da sua voz de cana rachada e pose de marialva - a imagem típica do português: a corrente de ouro, a unhaca, o bigode, e esta sim, todos o têm, o olhar embevecido para o alto, como que a ver se consegue descortinar a virgem santa por entre as nuvens ou a ler a faixa que o avião traz enquanto sobrevoa Albufeira em pleno pico do Verão.
"Kadoc Dancing-Putas", "Festa da T-Shirt Molhada", "Miss Beijo Fuzeta 2008", e pronto, o português é feliz, o dia está de sol, os putos hoje até se estão a dar bem, não fizeram birras, o leasing das férias foi amigalhadinho, mas é a vida, a seguir talvez um MacDonaldas, eles deliram, ficam todos felizes, e eu só queria saber quem é que disse àquele gajo que ele era jogador para o Benfica, mas pronto, a época está quase a começar, diz aqui no jornal de hoje, ó filha, passas-me aí o Sudoku no fim da página?, obrigado, já comi, só se houvesse de presunto, e um dia estão todos crescidos e nós, cá vamos andando, enfim, tira lá uma fotografia para a gente se lembrar um dia, e agora vou ali fazer uma sestinha, vocês vão e divirtam-se, vejam as lojas e cuidado com os ladrões, que hoje em dia não se pode confiar em ninguém.
A triste imagem de uma vidinha em potência arrepia-me a espinha ao ponto de me deixar paralizado rumo a ela.
Talvez que a desobediência seja um barbitúrico poderoso o suficiente para me arrancar desta catatonia hipnótica e muda.

NPAF

domingo, abril 09, 2006

Cadernos de um bombista experimental, ou a triste sina de um homem nos reinos de Portugal

Episódio I
"Ando um bocadinho farto disto..."



Às vezes dá-me acessos bombistas. Mas não é cá coisas de fazer uma bombinha só para assustar, não, eu cá ou bem que faço as coisas a sério, ou então para estar a perder tempo em brincadeiras... não faço cá disso.
Portanto, falava eu, às vezes dá-me acessos bombistas.
E nem sei bem por onde começar. Se pela vizinhas que não cala a puta da cadela às 2 da manhã, se pelo animal que vive em frente e pensa que tem um lugar cativo no estacionamento, se pelo merceeiro, que me leva quase mil paus por um quilo de açucar, se pela praça, por pagar enormidades de dinheiro por legumes e fruta que os "velhinhos agricultores" foram comprar por tuta e meia aos espanhóis do mercado abastecedor.
Não poderia esquecer (ó, seria imperdoável), de descer um andarzito, e ir à bancada do peixe, e pelo menos um, pelo menos um peixeiro, esventrá-lo docemente com a sua faca afiada, e misturar as suas às tripas da pescada vendida a preço de robalo, e ver os seus olhos ficarem mates, tais como os da dourada que ali se constipa no mármore. E a seguir, pegar no seu Mercedes (esforço suado de uma vida honesta?...), regá-lo com álcool (a gasolina está cara, amigo!), e... aufffff!...
(to be continued)

sexta-feira, abril 07, 2006

férias do coelhinho


algum tempo depois, sente-se a falta daquilo. porque aquilo é aquilo que faz com que se sinta isto e aquilo, nada de anormal, semos assim como samos e pronto.
ouvi dizer que jesus ia às putas, eu prefiro aquilo. porque aquilo é o sorriso e o brilho nos olhos, é a terrível verdade da ausência de tudo.
também há quem prefira drogas. eu prefiro aquilo, porque me sinto transformar na pessoa que sempre quis ser, esqueço-me do resto - mas também nunca fui grande observador.
aquilo tira-me o controlo, deixo de ter consciência do que faço, mas não faz mal, é mesmo assim que aquilo funciona pelos vistos.

venha de lá o cabrão do coelho que estou mais que preparado para ele!
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DACC

terça-feira, abril 04, 2006

As sombras caem e estive aqui todo o dia...



Este espelho diz-me que sou bonito, aquele ali diz-me que sou feio. Ao meio está uma janela que me diz que não quer saber, não está para me reflectir, deixar passar o vento já lhe dá mais que trabalho suficiente.
Do quarto ouço Dylan a dizer que nasceu aqui e morrerá aqui contra a sua vontade, qual talmudista recém-convertido. Lá fora abana a árvore furiosamente – sei que parece que estou em movimento mas estou parado, canta o homem no seu estilo inconfundível. Parece que há canções que têm os seus próprios momentos, e este é o seu momento na minha vida. Corro para o quarto e meto a faixa a repetir.

De espuma de barbear na cara, corto-me abaixo do queixo. Ainda tenho as cicatrizes que o sol não curou. Enquanto levanto o tampão do lavatório para que a água suja e a barba se vão, a minha noção de humanidade vai-se cano abaixo.
Limpo a cara e olho-me no espelho. Não está nem melhor nem pior que o normal – devo admitir que esta é uma das tarefas em que não sou nada bom. Já no quarto penso como perdi mais um dia sem fazer coisa alguma. As sombras caem e estive aqui todo o dia, está quente demais para dormir e o tempo foge, anuncia a canção.
Pela janela ouço uma travagem brusca, seguida de um embate violento e gritos de desespero. Os meus vizinhos correm a ver o que se passa, eu fico sentado na cama, apático, como se a vida tivesse feito uma pausa em mim. Estou hipnotizado pela música, não consigo ver porque me deveria preocupar

Um que morreu, outro que ficou em coma. Um rapazinho de seis anos, pelo que dizem. O condutor que provocou o acidente conduzia um carro de luxo, e assim que se apercebeu da gravidade da situação pôs-se a andar. A minha noção de humanidade foi-se cano abaixo, por trás de todas as coisas bonitas há sempre algum tipo de dor, anuncia o cantor com a sua voz de ovelha.

Acendo a televisão, a canção ainda a repetir, e acreditando em tudo o que é noticiado, uma rapariga adolescente suicidou-se pelas onze da manhã. Segui o rio e fui dar ao mar. A ponte 25 de Abril aparece numa belíssima imagem de helicóptero. Ao que parece, a rapariga mandou-se dela abaixo, os mergulhadores procuram ainda o corpo.

Na sua mesa de cabeceira encontraram uma nota de suicídio, que a mãe lê agora em voz alta para a televisão em directo. Poucas palavras se percebem, o choro é ainda mais convulso que antes, e este desespero está-me a agoniar. Ela escreveu-me uma carta e escreveu-a tão docemente, pôs em escrita o que tinha na mente, canta Dylan na passagem de lá maior para mi.
A mãe continua a ler a carta, e embora não se perceba nada do que ela diga, Dylan esclarece-nos meros versos adiante. Às vezes a minha carga é mais do que a que consigo carregar... Nasci aqui e morrerei aqui contra a minha vontade…

Desde que comecei a ouvir incessantemente esta canção, as desgraças sucedem-se. Não que elas não sucedessem antes, não que ela seja a razão de estas acontecerem. Esta canção não é um mau agoiro, como muitos religiosos estarão certamente a pensar agora, é antes uma catarse, um lenço estendido para nos limpar as lágrimas, um abraço forte no momento do adeus…
Não faz escuro ainda, mas está quase lá…
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DACC

Nota - verificar a letra uns textos abaixo neste mesmo blog ou em http://www.bobdylan.com/songs/notdark.html
Imagem: http://nossomocambique.blogs.sapo.pt/arquivo/PEMBA%20-%20noite%20de%20luar%20na%20praia%20do%20Wimbe.jpg